Opinião
OcupA! – Salinas da Margarida e os avanços pela juventude

Grupo de Teatro da Esquina – Divulgação
Neste final de ano o meu destino foi Salinas das Margarida, uma cidade com em torno de 15 mil habitantes, e que está entre as 10 cidades mais negras na Bahia, segundo o IBGE de 2010.
A juventude negra de Salinas muito se organiza através da cultura, da arte, uma grande aproximação com a dança, o teatro e afinidade estética.
É uma juventude forte, debate o combate ao racismo e às opressões. Não é muito difícil você enxergar meninas e meninos negros de 15 a 19 anos utilizando tranças de todas as cores e tipos, os cabelos naturais e uma presença marcante nos espaços.
Fiquei em Salinas por quatro dias e fui apresentado a um grupo de teatro chamado “Teatro da Esquina” que, para mim, é extremamente engrandecedor e empoderador, por conta da forma que se é feita as apresentações. Jovens negros e negras se unem em qualquer esquina da cidade, praças e espaços possíveis e realizam suas apresentações.
“O grupo surgiu a partir de uma peça que fizemos na igreja, no dia da padroeira de Salinas. No começo, tinha 21 integrantes, hoje em dia tem 10, alguns que por motivos maiores tiveram que se afastar. O grupo é importante porque, como você deve ter reparado, não tem muitos grupos que trabalhem com arte (movimentos, manifestações), então cabe a nós do Teatro de Esquina mexer em alguns assuntos como o combate ao racismo, à violência contra mulher e vários outros” – Ed Oliver, jovem componente do “Teatro de Esquina”.

Grupo de Teatro da Esquina – Divulgação
A cidade, devido à estrutura racista e toda a formação do mercado ilegal brasileiro, mantém construções de facções e uma educação opressora. As escolas se tornam prisões para as crianças e adolescentes, é interpelada pelo tráfico de substâncias ilícitas e pela aliciação de jovens para esse mercado.
Ações culturais como esta, “mudam futuros, mudam realidades”, é uma forma de criar outros futuros para destinos que, pela cultura e estrutura social, já estão traçados. É uma forma de mudarmos as realidades através das artes e fazer o que nós queremos: VIVER.
Espero que as ações e produções culturais por toda a Bahia se multipliquem e que nós possamos criar novas identidades, conquistas e vitórias com isso. Essa é uma sociedade em que um presidente interino branco, afirma, publicamente, que uma chacina, causada pela estrutura de um país racista – que coloca as pessoas negras na mira de balas e as matam -, é “um acidente. A mídia, golpista igual, aplaude as mortes e assassinatos que estão ocorrendo ou omitem os acontecimentos.

Ocupa e convera Foto: Suzana Batista
Sabemos que todos os dias estamos passando por chacinas, sejam nas periferias, favelas, prisões – não são acidentes. São, estrutural e historicamente, planejadas em torno de um privilégio que fazem questão de manter: a “verdadeira superioridade”, como explica Lélia Gonzales.
Por conta disso que é tão importante ver a juventude negra forte e empoderada, produzindo as suas próprias narrativas. Como a Marcha do Empoderamento Crespo, as rodas de conversa que estão acontecendo por toda cidade, as loja de resistência negra como a Agô Nilê, as e xs youtubers negrxs que estão levando as pautas de resistência pelas redes.
Ultimamente, participei de seletivas para o I Prêmio de Jornalismo Afirmativa com tema “A violência da guarda municipal nos espaços de encontros da juventude negra”. Ganhei o prêmio, agora vou produzir um audiovisual de acordo com esse tema e eu só tenho uma preocupação: quais as consequências que vamos conseguir produzir para esses espaços?

Foto: Kawe N. Nzangi
Em um momento de retrocessos como esses que estamos passando: um presidente interino que conseguiu alcançar o cargo através de um golpe e um presidente ultraconservador eleito no país que é considerado a maior potência do mundo, só faço um pedido: NÃO PAREM DE LUTAR.
Não se sintam pressionados com essa supremacia branca que está a todo tempo nos silenciando, mas também não se responsabilizem por uma luta sozinhxs. Lembrem que a luta é coletiva e cada um ocupando seu espaço fará as necessárias mudanças. Não pense em abraçar o mundo sem abraçar aqueles que estão ao seu lado.

Foto: Joa Souza
Ícaro Jorge é colunista do Portal SoteroPreta neste espaço chamado “OcupA!”, que será atualizada a cada 15 dias.
Artigos
Parentalidades negras: Dói Gerar? – Por Aline Lisbôa
Aos 20 anos, ganhei minha primeira filha. Lembro que o meu maior desespero, naquele momento, não foi a maternidade em si, mas o medo de me tornar mais uma “guerreira”. Essa palavra, tantas vezes usada como elogio, sempre me soou como uma armadilha. “Guerreira” era o nome dado às mulheres negras que eu via à minha volta — sempre fortes, resilientes, mas quase nunca acolhidas. Mulheres que aprendiam cedo a engolir o cansaço e a transformar dor em sobrevivência.
Gerar uma menina preta, portanto, foi uma experiência marcada por aflições e esperança. Eu já tinha letramento racial suficiente para compreender que amar, dentro de um contexto desigual, iria me doer. Não porque o amor fosse escasso, mas porque amar uma criança negra em um país racista é um ato político — e, como todo ato político, carrega resistência e feridas.
Chorei e senti medo por longos nove meses. Idealizei a infância da minha filha e, inevitavelmente, revisitei as dores da minha. Cada contração parecia carregar também o peso das minhas histórias e de todas as meninas pretas que tiveram sua doçura interrompida cedo demais.
Mas a maternidade também me devolveu à criança viva que ainda existia dentro de mim. Quando minha filha sofreu seu primeiro episódio de violência racial, senti algo que nunca havia sentido antes: uma força ancestral que me empurrava a reagir. Era como se, naquele instante, eu fizesse as pazes com o silêncio imposto à menina que eu fui. Pela primeira vez, não calei. Escrevi, falei, denunciei. A maternidade, para mim, tornou-se um espaço de elaboração e cura coletiva.
A partir daí, passei a acreditar mais profundamente na potência transformadora do letramento racial nas famílias negras. É por meio dele que compreendemos o funcionamento do racismo estrutural e as relações desiguais entre pessoas negras e brancas — um sistema que atravessa as infâncias, molda oportunidades e define afetos. Educar uma criança negra sem esse entendimento é deixá-la vulnerável a uma violência que, muitas vezes, começa na escola, nas telas, ou no olhar do outro.
O letramento racial, portanto, não é um luxo intelectual: é uma ferramenta de sobrevivência e dignidade. Ele nos ajuda a nomear as dores, a identificar o racismo, e a responder a ele com consciência e estratégia — não mais com silêncio e culpa.
Lembro-me da matriarca da minha família, minha bisavó Celina. Mulher preta, sem estudos formais, mas dona de uma sabedoria que hoje reconheço como ancestral. Ela entendia, à sua maneira, o funcionamento do mundo e sabia como proteger seus filhos, netos e bisnetos. Sua forma de amor era também resistência. Celina não falava de “letramento racial”, mas vivia a prática da reexistência todos os dias — ensinando-nos a caminhar com dignidade mesmo quando o caminho era de pedras.
Hoje, quando olho para minha filha, percebo que gerar uma criança preta foi, acima de tudo, um ato revolucionário. Porque gerar, nesse corpo e nesse tempo, é também desafiar o projeto histórico que tentou nos apagar. E ser mãe/pai negros, com consciência racial, é transformar o medo em força, o silêncio em palavra, e o amor em luta.
Aline Lisbôa é mulher, negra, nordestina, mãe, educadora antirracista, consultora de diversidade, equidade e inclusão, pedagoga, psicopedagoga e pesquisadora, além de articulista e escritora. Seu livro “Quantos sim cabem em um não” está disponível AQUI.
Opinião
Trançar é trabalho: o reconhecimento oficial é vitória, mas a luta continua
Em junho de 2025, o Brasil deu um passo histórico: a profissão de trancista foi oficialmente reconhecida na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), sob o código 5193-15. Isso significa que o Estado, através do Ministério do Trabalho e Emprego, reconhece, de forma tardia, que trançar cabelos é ofício, é arte, é cuidado, é economia viva. E mais do que tudo isso: é trabalho.
O reconhecimento representa uma conquista fundamental para milhares de mulheres, em sua maioria negras, que sustentam suas casas e comunidades com as mãos, os fios e os saberes ancestrais que atravessam gerações. Trata-se de uma reparação simbólica e política, que marca o início de uma nova etapa para essas profissionais: a da reivindicação por direitos reais.
Mas é preciso deixar claro: esse reconhecimento, apesar de histórico, não resolve os problemas estruturais enfrentados pelas trancistas no cotidiano. A informalidade ainda é massiva. A precariedade também.
Trançar é estar horas seguidas em pé, muitas vezes sem pausas, sem ergonomia adequada, sem alimentação garantida. É adoecer com dores musculares, tendinites, varizes e não ter acesso a atendimento médico regular ou benefícios trabalhistas. É trabalhar em casa, dividindo o espaço com filhos pequenos, improvisando berços ao lado da cadeira de trança. É ser artista, psicóloga, educadora — tudo isso num ambiente que raramente é chamado de “profissional”.
Além do desgaste físico e emocional, existe o estigma. Por muito tempo, a atividade foi vista como “bico”, “coisa de quem não tem estudo”, ou “trabalho informal de periferia”. Esse racismo estrutural que desvaloriza o fazer preto, que silencia os saberes afrocentrados, também se manifesta nas ausências do Estado: não há linhas de financiamento específicas para esses negócios, nem políticas de formação técnica acessíveis, nem políticas de saúde do trabalho voltadas à realidade dessas mulheres.
O reconhecimento na CBO precisa ser mais que um selo burocrático. Ele deve abrir caminhos para políticas públicas efetivas: acesso facilitado à formalização, capacitação profissional gratuita, inclusão previdenciária, incentivos para empreendedoras da beleza negra, cuidados com a saúde física e mental dessas profissionais. Precisa ser prioridade nos planos municipais e estaduais de economia criativa, de cultura e de geração de renda.
Também é hora de rever o que se entende por “profissão”. O saber que vem da oralidade, da prática cotidiana e da vivência comunitária precisa ser valorizado tanto quanto aquele que vem da academia. Os saberes se der trancista são ensinados de mãe pra filha, de amiga pra amiga, nas vielas, nos quintais e nos salões. E isso é educação também. Isso é conhecimento.
Reconhecer as trancistas é reconhecer o valor da cultura afro-brasileira, a potência das periferias e a força das mulheres negras que movem o país com suas mãos. É legitimar que fazer trança é mais que estética — é identidade, resistência e construção de futuro.
Hoje, o nome das trancistas está, enfim, no papel. Mas a dignidade do trabalho vai além da formalidade. Exige investimento, cuidado e respeito. Porque trançar é trabalho. E como todo trabalho, merece ser protegido, valorizado e vivido com dignidade.
Por Iasmim Moreira
Opinião
CONAPIR 2025: É hora de romper a narrativa que autoriza a morte de pessoas negras – Por Luciane Reis
A Conferência Nacional de Igualdade Racial precisa confrontar o discurso oficial de segurança pública que desumaniza e extermina corpos negros no Brasil.
Enquanto o Brasil se prepara para a Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR) de 2025, um tema precisa ocupar o centro do debate: como a narrativa oficial sobre segurança pública tem sustentado o genocídio da população negra, especialmente nas periferias urbanas.
Na Bahia, estado com a maior população negra do país, há mais de 30 anos se reforça um discurso de combate ao crime centrado em repressão e militarização. O resultado é conhecido: altíssimos índices de letalidade policial, sobretudo contra jovens negros. Mas o mais alarmante é que essa política vem acompanhada de uma comunicação que normaliza a violência estatal.
A linguagem da “guerra às drogas”, do “confronto” e do “bandido abatido” desumaniza as vítimas e esvazia o debate público. A sociedade é anestesiada por uma narrativa que transforma assassinatos em estatísticas e legitima a violência como forma de controle social.
O silêncio coletivo diante dessas mortes não é natural — ele é construído. É produto de uma comunicação estratégica que define quem deve ser temido, controlado ou eliminado. E os meios de comunicação, ao reproduzirem as versões oficiais sem questionamento, reforçam essa lógica.
A CONAPIR 2025 não pode ignorar esse pacto de silenciamento. Se pretende ser um marco real na promoção da igualdade racial, precisa enfrentar esse modelo de segurança e a forma como ele é comunicado. Isso significa:
- Exigir uma comunicação pública antirracista, que enfrente os estigmas históricos contra a população negra;
- Estabelecer protocolos responsáveis para a cobertura midiática de violência, que respeitem os direitos humanos;
- Apoiar a mídia negra e periférica, que já produz contra-narrativas fundamentais;
- Revisar as políticas de segurança com foco em cuidado, prevenção e reparação racial, e não em extermínio.
Segurança pública não é sinônimo de controle e morte. É direito à vida com dignidade, especialmente para aqueles que historicamente foram alvos do Estado.
Sem romper com essa narrativa que mata e silencia, não haverá igualdade possível.
A CONAPIR tem a chance de começar esse novo capítulo. Que não seja mais uma conferência de promessas — mas o início de uma reescrita coletiva da história, onde a vida negra não seja exceção, mas regra.
Luciane Reis é Comunicóloga, graduada em Publicidade e Propaganda pela UCSAL, especialista em Produção de Conteúdo para Educação e mestra em Desenvolvimento e Gestão pela UFBA e CEO Mercafro
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