Opinião
Política e racismo – Por Fábio Nogueira
Negras e negros na política ainda são minoria em um país em que, segundo os últimos dados do IBGE, mais da metade da população (51%) se autodeclara preta ou parda. Na intersecção entre gênero e raça, a sub-representação dos espaços de poder fica ainda mais evidente.
Nas últimas eleições de 2016, segundo pesquisa do Instituto de Estudos Socioeconômicos, das 16.354 candidaturas para o cargo de prefeito em todo o Brasil, apenas 2.057 (12,6%) eram de candidaturas do sexo feminino e, destas, 652 são mulheres negras, ou seja, 4% do total. Só 28,8% dos candidatos a prefeito se autodeclararam pretos ou pardos.
Para as candidaturas a vereador o cenário se repete. Das 460.651 candidaturas no país, apenas 70.265 (15,3%) foram de mulheres negras (ao todo 151.390 se candidataram, o que equivale a apenas 32,9%, no total representam 51% da população). A política continua hegemonicamente masculina: 67,1% dos candidatos a vereador eram homens e, destes, apenas 33,4% negros.
De acordo com as pesquisas, quando cruzamos estes dados com o perfil demográfico de cada região a disparidade fica ainda mais evidente, o que torna a Bahia (79% dos baianos se autodeclaram negros ou pardos), um dos estados com maior a desproporção entre perfil racial da população e representatividade de gênero e raça nos espaço de poder.
A pressão do movimento negro gerou respostas no âmbito institucional. O projeto original do Estatuto da Igualdade Racial, de autoria do Senador Paulo Paim (PT/RS), previa a reserva de vagas a candidatos autodeclarados negros e pardos nas eleições, o que foi retirado quando de sua aprovação em 2010.
Importante dizer que a reserva de vagas para as mulheres nas disputas eleitorais ocorre em função da legislação eleitoral que a normatiza o que, caso não ocorresse, com certeza tornaria a desigualdade de gênero e raça nos pleitos eleitorais ainda mais profunda.
A reserva de vagas para negros e negras nos pleitos contribuiria para reduzir esta sub-representação nos espaços de poder.
Há ainda uma outra questão que é o racismo nas estruturas partidárias o que, por sua vez, coloca as candidaturas negras, com raríssimas exceções, em condições sempre desiguais de disputa.
As candidaturas negras contam com pouco ou nenhum apoio de suas direções partidárias e muita dificuldade de terem legitimadas suas pautas e plataformas, em especial, aquelas que têm como pontos centrais a luta contra o racismo, a desigualdade de gênero e o combate à intolerância às religiões de matriz africana.
Não raro estas candidaturas são constrangidas a “não falar em raça”, fazendo alusão ao ditado que diz que “não se fala em corda em casa de enforcado”. Estes “assuntos polêmicos” não deveriam ser colocados em pauta, pois “tiram voto” e desagrada o eleitorado mais conservador. É evidente que há um eleitorado conservador que vota em políticos negros desde que estes não falem de raça ou se coloquem abertamente contra as políticas raciais como foi o caso emblemático da eleição de Fernando Hollyday (DEM) para vereador em São Paulo. Porém há espaço para raça e gênero entre as candidaturas progressistas.
Para ficarmos em alguns exemplos, os desempenhos de candidaturas como as de Áurea Carolina (vereador mais votada de Belo Horizonte), Talíria Perrone (Niterói), Marielle Franco (Rio de Janeiro), eleitas vereadoras com expressivas votações pelo PSOL; de Úrsula Vidal (Rede) que amealhou 10% dos votos à disputa a prefeitura de Belém; Tainara Faria (PT) de Araraquara e, no caso de Salvador, as votações de Lina Ramos (PSOL) e Lindinalva de Paula (PT) indicam a possibilidade concreta de que, mesmo em condições muito adversas, é possível alcançar bons desempenhos eleitorais que fortaleçam este processo de desracialização da política.
Não seremos mais a geração habituada a sub-representação nos espaços de poder. Fazer política também é falar de gênero, raça e intolerância religiosa. Fazer política é ocupar os espaços de poder para transformá-los não apenas para garantir a representatividade (o que é um pressuposto).
Mas para, a partir desta, construir um projeto de sociedade sem a exploração do trabalho e desigualdades sociais. O que está em questão, portanto, é o tipo de democracia que queremos para o nosso país fator definitivo para diferenciar esquerda e direita nos dias atuais.
*Fábio Nogueira é Doutor em Sociologia pela USP e mestre em Sociologia e Direito (UFF). Professor da Universidade do Estado da Bahia. Autor dos livros “Porto” (Ed. Life, 2015), obra literária, e mais recentemente “Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência (Eduneb, 2016). É militante do movimento negro e fundador do Círculo Palmarino. Ex-candidato a prefeito de Salvador, presidente do PSOL Salvador.
Opinião
#Opinião: “Entre a neve e o milho branco, chegamos a Kwanzaa” – por Patrícia Bernardes Sousa
E no Brasil desbravador de 2024, educadores e gestores públicos rodam em círculos como num grande Xirê (Siré) onde não existem competências e habilidades, previstas na Constituição Federal de 1988 e na Base Nacional Comum Curricular, para que o conhecimento dance e faça os seres apresentados como humanos na Terra, evoluírem. Sim, é sobre isso. Entre a neve e o milho branco, estabeleceu-se a cultura do ódio religioso para que o culto ecumênico da fé em Papai Noel fosse tão demonizado quanto aqueles que acreditam que seu “bom velhinho” é Papai Oxalá.
Não existem artigos previstos na Constituição de 1988, bem como também não existem competências e habilidades na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que “troque a bença” ou “abençoe com óleo ungido” o culto ao ódio, ao assassinato, à violência psicológica, física e patrimonial vivenciada pelos povos originários e comunidades tradicionais no Brasil.
O menino Jesus, testado e humilhado diversas vezes num deserto com orientações espirituais de seu pai, nosso Senhor Jesus Cristo jamais entenderia o porque que todas as tábuas dos mandamentos escritos por seu leal discípulo Moisés, iriam respaldar as bocas e as escrevivências de “espíritos de engano” que fazem da gestão escolar, da coordenação pedagógica e do planejamento estratégico anual de professores uma “fogueira da inquisição” junto à crucificações diárias para além das paredes das salas de aula.
Viver Nosso Senhor Jesus é amor.
Viver Pai Oxalá é amor.
Viver Tupã é amor.
No culto ao ego adoecido, criamos um outro tipo de Deus: o “Deus do Ódio” que facilmente encontrou e encontra abrigo em corações sujos dentro e fora de Terreiros, Igrejas e Templos das mais diversas religiões onde o dinheiro está num “altar” ainda maior que o conhecimento legítimo da nossa ancestralidade e dos nossos antepassados.
Papai Noel não deseja sangue na neve. Ele conta a história de onde ele veio.
O menino Jesus não quer sangue na Terra. Ele conta a história de onde ele veio.
Papai Oxalá não quer sangue na Terra. Ele conta a história de onde ele veio.
Tupã não quer sangue na Terra. Ele conta a história de onde ele veio.
A BNCC também prevê a habilidade EF03HI03, que consiste em identificar e comparar pontos de vista sobre eventos significativos, condições sociais e grupos culturais, com destaque para as culturas africanas, indígenas e de migrantes. A Lei nº 10.639/03, por sua vez, torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira em especial nas áreas de artes, literatura e história. Na BNCC, quando aparece o termo “Educação das Relações Étnico- Raciais”, é para fazer menção à legislação que trata da obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena nos currículos da Educação Básica.
E quando a Kwanzaa chega? Como entender e valorizar algo tão maior que os princípios do eu, do outro e do nós, dentro das previsões da BNCC que estruturam as competências e habilidades de se poder andar de carro, de metrô, de avião ou a pé da forma que desejarmos nos vestir e cultuar o deus que cremos?!
O que dizer aos educadores adoecidos na arte de lecionar e estão próximos da sua aposentadoria?
O que dizer para lavar com “águas de paz” gestores escolares e coordenadores pedagógicos, também adoecidos por enraizar ainda mais fundo a semente da perseguição do plano de aula diário do educador em sala de aula?
O que dizer à mãe solo que não prevê o Menino Jesus como o Senhor e Salvador, pois a única referência masculina que ela teve repetiu o ciclo tóxico vivenciado pela sua família ao perceber que a sua gravidez não seria acolhida numa manjedoura de amor e sim palavras de escárnio e tapas na cara anunciando as dores para os seus próximos anos de vida, com um filho no braço e muitas coisas pra dar conta sozinha.
A neve não encanta, o milho branco não traz paz e a Kwanzaa não anuncia e nem anunciará nada para estas milhões de “Marias” que não tiveram a base forte de um companheiro como seu “Salvador” e ainda estão aos pés da cruz em busca de milho branco para se alimentar de paz. Não diga a uma mulher indígena que ela foi estuprada por um bem maior que foi colonizar o Brasil. Tupã, o criador do mundo, não se faz presente nisso. Ampliar o foco dos currículos para a diversidade cultural e racial, valorizar a pluralidade étnica, prevenir preconceitos, estereótipos e estigmas e formar cidadãos com compreensão de mundo e relações sociais deveriam ser nossos mandamentos, mas não são.
Kwanzaa se anuncia com amor. Umoja, Kujichagulia, Ujima, Ujamaa, Nia, Kuumba, Imani são princípios que, para além de sermos dizimistas, moldam a nossa fé sem armas com tiros à queima-roupa na nossa dignidade salarial, sanidade mental e expansão de nosso conhecimento.
Quando se refere às aprendizagens essenciais e não inclui uma pauta antirracista entre as prioridades, a BNCC desconsidera a realidade social brasileira, que é racista, preconceituosa e segregadora. No Brasil, o Kwanzaa já é celebrado em estados como São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
O ódio, substantivo masculino, já estava sendo praticado antes mesmo nas disputas entre os homens das cavernas. Em 2024, ele percorre corações adoecidos dentro e fora das salas de aula. O campo de experiência “O eu, o outro e o nós” da Base Nacional Comum Curricular aborda habilidades como conhecer e respeitar regras de convívio social, respeitar a diversidade, desenvolver a identidade e até mesmo facilitar a socialização dos povos originários e as comunidades tradicionais. É como um “dever de casa” que nunca fica pronto.
Vivemos ainda com aqueles avisos colados com durex e escritos em folhas de ofício na horizontal dizendo:
“Não derrube o Menino Jesus da manjedoura”; ” Ser índia não é fetiche sexual”; “Torço/Ojá não é pra esconder drogas e passar em alfândegas de aeroportos”; “Milho branco alimenta e traz paz”; “Mulheres Negras não são souvenir de Carnaval”; “Minha conta de orixá não é da sua conta”.
Derretemos a neve para afogar Papai Noel e fazermos dos adeptos religiosos do Deus Tupã e Pai Oxalá uma piada para racistas recreativos anualmente.
Deus é fiel! Olorum é luz! Tupã é resgate à natureza humana.
2025 está logo ali.
Patrícia Bernardes Sousa é jornalista, redatora e integra projetos de impacto social, letramento, educação e cultura.
Opinião
#Opinião: Dando rum na educação construindo pontes sem dó – Por Patrícia Bernardes Sousa
Sim! Nem só o orixá toma “rum” no barracão da sua vida pessoal e profissional. Desde o início destes festejos do Novembro Negro 2024, a Bahia do poeta Castro Alves permitiu que a sua “concha acústica sonora” desse “rum” aos gestores de cultura, empresas privadas e simpatizantes empresariais da educação, letramento, teatro e arte-educação na capital baiana e no mundo.
Não deu “Dó” e ninguém deu “Ré” na compra de ingressos para vislumbrar o verdadeiro espetáculo vindo da troca de couros sagrados tocados pelos maestros dos mais diversos grupos culturais de Salvador. Com respeito e determinação legítima, ogãs, filhas de santo, ebomis, abiãs e yawos levaram a sua comunidade à visibilidade máxima ao entender que identidade racial e cultura identitária nasce na troca do couro e no lapidar na madeira para que o atabaque ecoe a nossa súplica.
Neste caso, a súplica foi ecoada sobe a batuta das águas de Oxalá e Nosso Senhor do Bonfim, que permitiram que a paz durante os eventos do G20, do cinquentenário do “Mais Belo dos Belos”, o Bloco Afro Ilê Aiyê e da cadência das Orquestras Afrobaianas, chegassem como perfume suave aos nossos ancestrais. Ninguém limpa couro com água salgada e é por isso que a alegria dos erês se fez e se faz presente em cada sorriso de vitória dos maestros Ubiratan Marques e Carlos Prazeres.
Não se tem como ecoar “Mi-mi-mi” diante da grandiosidade na excelência dos ensaios e preparações com a cabaça de conhecimento presente na vida destes maestros. A Orquestra Afrosinfônica da Bahia e a Orquestra Sinfônica da Bahia (OSBA) dão “rum” a quem acredita que somos subnotificação e que não existe qualidade nos ouvidos musicais e musicados de quem não tem dinheiro pra comprar nem um violino, um trombone ou até mesmo um simples cotonete.
A fome cultural e orgânica de pessoas carentes de acolhimento estrutural em Salvador oferta o ilá (grito) que nos alerta da importância de mobilizar, sensibilizar e deliberar políticas públicas de captação de recursos que ofereçam “cabaças” de possibilidades de realização de sonhos educacionais e profissionalizantes ao invés de “cuias” que limitam o abastecimento de água para limpeza do corpo e da hidratação humana diária através destes projetos.
Crianças, jovens e adultos formam um “coro” regido por “couros” devidamente abençoados por pembas de lucidez e o suor salgado das águas que curam e libertam cabeças que não tinham sonhos seja na Liberdade, Itapuã, Candeal, Bairro da Paz, Pelourinho, Subúrbio Ferroviário e muitos outros pela Bahia e pelo Brasil.
Com espetáculos como “Sinfonia Terra Brasilis”, “Ponte Para a Comunidade – Orquestras Afrobaianas” e “ OSBArris”, as políticas sociais de Salvador ensinam aos seus gestores que a educação musical também é pioneira na arte ancestral dos ensinamentos orais que legitima a direção (rum) que são passados de mães solo, em sua maioria, para seus filhos, filhas e filhes.
Para atender ao Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, a Bahia vai precisar sair dos atuais 37% para 43% agora em 2024, chegando a 50% em 2025. A meta é alcançar 80% de sucesso até 2030. Subnotificações que chegam aos nossos ouvidos sem “dó” e quase obrigando gestores culturais como os maestros Ubiratan Marques e Carlos Prazeres a dar “ré” na hora de colocar as suas apresentações com carência profunda como uma concha nas profundezas do mar da Baía de Todos os Santos. 34 mil estudantes, entre 18 e 24 anos são analfabetos na Bahia, segundo dados do IBGE.
Das cordas e dos couros de instrumentos musicais ainda podemos promover notas musicais e notas máximas que ecoem aprovações de crianças e jovens carentes pelo Brasil. Na Bahia, 77 em cada 100 crianças e adolescentes vivem na pobreza em suas múltiplas dimensões, afirma o Unicef. Esse sim é o verdadeiro espetáculo que vislumbramos aplaudir: a erradicação da fome e da pobreza através do “rum” na gestão pública sucateada de nosso país. Uma verdadeira proclamação da República de Direitos Humanos.
Patrícia Bernardes Sousa é jornalista, redatora e integra projetos de impacto social, letramento, educação e cultura.
Opinião
#Opinião: Novembro Negro e o Mito da Meritocracia: Um Convite à Reflexão – Por Luciane Reis
O Novembro Negro nos convida, anualmente, a revisitar a história, reavaliar estruturas e reafirmar lutas pela igualdade racial. Nesse contexto, a discussão sobre a meritocracia se torna urgente, pois essa ideia, muitas vezes celebrada como símbolo de justiça social, carrega as marcas de um pensamento colonial que perpetua desigualdades.
A meritocracia pressupõe que todos partem do mesmo ponto na corrida pelo sucesso, ignorando as distâncias impostas por séculos de exclusão. É como esperar que dois corredores compitam em igualdade enquanto um carrega o peso da história em suas costas. No Brasil, onde a escravidão moldou as bases econômicas, sociais e culturais, a meritocracia funciona mais como uma cortina que esconde privilégios do que como um mecanismo de equidade.
Esse sistema, aparentemente neutro, ignora que o acesso à educação, saúde e oportunidades profissionais sempre foi condicionado por cor e classe social. Para quem descende de uma trajetória de exploração, a realidade é outra: os degraus da mobilidade social são mais altos e escorregadios. O pensamento colonial que estruturou o Brasil não apenas determinou quem teria acesso à terra, ao poder e ao conhecimento, mas também deixou como legado uma lógica que naturaliza a exclusão.
Novembro Negro é um tempo para questionar essa narrativa. Quando celebramos Zumbi dos Palmares, Dandara e tantos outros ícones da resistência, estamos também desafiando a ideia de que as conquistas são individuais. O sucesso negro no Brasil nunca foi apenas mérito pessoal; é fruto de uma luta coletiva, travada contra um sistema que se reinventa para manter privilégios.
Superar o mito da meritocracia exige ir além de reconhecer desigualdades. Precisamos de políticas que reparem os danos históricos, ações afirmativas que nivelam o campo de oportunidades e, acima de tudo, coragem para repensar nossos valores. A verdadeira justiça não é um pódio onde poucos chegam, mas uma estrada onde todos podem caminhar juntos.
Que este Novembro Negro nos inspire a abandonar os mitos que aprisionam e a construir um país onde o mérito seja medido pela força do coletivo, e não pela manutenção de privilégios disfarçados de igualdade.
Luciane Reis é Comunicóloga, graduada em Publicidade e Propaganda pela UCSAL, especialista em Produção de Conteúdo para Educação e mestra em Desenvolvimento e Gestão pela UFBA e CEO Mercafro