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Opinião

“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança” – Por Luciane Reis!

Jamile Menezes

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Tem muito tempo que não escrevo. Seja pela falta de tempo, erros da escrita  que nos acompanham neste processo de dizimação da nossa gente, ou pelas palavras de desencorajamento ou desestímulo que tenho ouvido em alguns espaços. Aconteceu uma situação muito emblemática na Câmara de Vereadores esta semana. Eu que venho de espaços de discordância, mas nunca de violação extrema de direitos; vi um filho do que se existe de mais conservador em Salvador autorizar o uso de spray de pimenta em servidores do município – pelo simples motivo dele e de seus “comparsas” não serem ouvidos.

Fico imaginando se nossa reação para cada vez que não somos ouvidos pelo prefeito ou governador, fosse o que eles autorizam seu braço armado fazer conosco?  O despreparo para estar como presidente, as birras e gritos de menino branco de prédio de luxo que só sabe o que é periferia de 4 em 4 anos e que – pasmem – tem nos nossos a legitimidade para adentrar as comunidades. Seja pelos brancos, ou pelos ombros de alguns ditos “líderes comunitários”, ou por nós mesmos, que não conseguimos compreender que se importar com o outro passa por se ver.

Temos um processo real de desumanização dos nossos. Esse é o maior legado brasileiro à comunidade negra. A animalização e normatização das nossas dores. Ver o sempre calado “príncipe do gueto”, só se pronunciar quando é para nos destruir, ou ver filhos, netos e amigos de quem sempre nos fez mal, nos destruindo,  me faz invocar King – com quem nem tenho tanta afinidade: “O que me preocupa não é o barulho dos maus, e sim o silêncio dos bons”.

 

É Leno, aqui do nosso lado. É uma capa de Jornal que teria causado rebuliço em qualquer país sério, e que por muito menos se tornaria notícia internacional com condolências em todo o mundo. É garoto sendo arrastado de Shopping, ainda que alguém tente  garantir a máxima do MST que diz: “ordem é todo cidadão não passar fome e progresso é ter sua dignidade garantida”. Não foi real aquele grau de brutalidade assistida na Câmara. Não pode ser real!

Os gritos histéricos de Leo Prates, seus posicionamentos autoritários e, por fim, sua autorização para que a Polícia fizesse o que sabe fazer bem, não pode ser real.  Não é possível que pessoas negras de Salvador tenham eleito nomes como o dele. Não pode ser normal o silêncio do Estado diante de 30 mortes registradas em menos de 24h, e dos números que só aumentam: 66, desde a morte de 1 (um) policial – ainda que de forma desumana.  

Não pode ser normal que o governador deste Estado, junto com seu secretário de segurança, ache que a cor da pele é o que menos importa e vamos eleger uma lista de homens brancos com instintos militarizados para continuar nos massacrando. É cultural no Brasil, e em especial na Bahia, a invisibilidade das mortes  e violências sobre peles negras – independente da idade – pela governabilidade. Como dormir ao ver a quantidade de bebês encostando a cabeça naqueles bancos frios da Piedade, com sono?

Moramos em um estado de políticas sociais insignificantes, onde o entendimento de humanização negra, para ambos os governantes, é munição e spray de pimenta.  Precisamos fazer outras escolhas. Não podemos mais eleger “príncipes” que se tornam algozes, centroavantes que entendem que é possível fazer gol de bicicleta com nossas vidas. E, acima de tudo, continuar votando em “aliados” que se silenciam na defesa de um governo de coisas, que quer ser o mais algoz combatente de outro que se espelha neste, mas é considerado inimigo.  

genocídio da juventude negra

Não precisamos de representantes de coisas. Precisamos fazer outras escolhas políticas, que passam por eleger candidaturas negras e femininas de forma coletiva. Não podemos  morrer como insetos no braço deste Estado que nos desumaniza o tempo todo, e achar que quatro homens brancos, com séria simpatia e casamento, com a postura truculenta da Polícia, sejam eleitos.  Não existe projeto coletivo quando o corpo negro é o único que tomba. Não pode existir projeto de crescimento deste estado, quando não somos envolvidos nos processos e ações.

Leo Prates e parte da Câmara de Vereadores – eleita pelo voto negro da  periferia – disse de qual lado estão e quais escolhas farão. E nós continuaremos os elegendo? Rui Costa diz em seu silêncio dos “bons”, qual o lado que ele defende quando a família de campanha de Margarina dele é mostrada e se silencia diante do esfacelamento das nossas. O que ainda achamos que podemos esperar de pessoas que não se parecem conosco e dizem nos representar? Ser morador do bairro da Liberdade não coloca todos que ali residem ou residiram na mira do Estado.  O que esperar de candidatos negros que nenhuma linha dizem sobre situações como essas, por que acreditar que eles são o nosso futuro?

“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança” – Provérbio Africano.

Como essas aldeias, travestidas de município e Estado, vem – de fato – educando nossas crianças? Como nomes negros que saem candidatos esse ano vem se posicionando para que essa aldeia de fato eduque os nossos?  Temos um secretário de Educação evangélico, que pluralidade ele defende? O que nós, homens e mulheres negras, achamos que pessoas que não sentem o que sentimos podem mudar nossa realidade?

Não morremos porque estamos nas drogas, mas por termos um estado que, conjuntamente, seja de esquerda ou de direita. Nunca levou de forma séria outros braços para as comunidades que não a Polícia. Como diz o economista Silvio Humberto, as coisas se degradam. Temos governos que querem deixar como legado coisas, ao invés de conhecimento. Coisas sempre tem uma capacidade máxima,   pessoas não. A brutalidade da morte do policial, é o reflexo de um país que constrói na cabeça das pessoas a certeza de que elas não valem nada. Se elas sabem que não são nada, porque vão achar que alguém que se pareça com ela terá algum valor?

Luciane Reis

Luciane Reis

A não reflexão sobre nossos princípios de representatividade, de humanidade e compromisso com o que nos é caro tem feito com que também homens e mulheres se silenciam em situações como essas. Não existem seminários, falas públicas exaltadas a serem feitas. Há um governo a ser confrontado e esse governo foi eleito e será reeleito com votos de homens e mulheres negras que ainda se iludem achando que fazem parte deste projeto. Outras escolhas políticas passam, inclusive, por voltarmos a ser militantes da pauta racial  e lembrar que, como diz a socióloga Vilma Reis, “nossos títulos acadêmicos só fazem sentido se estiverem à serviço da luta. Eles precisam ser a arma que desmonta a casa grande”. Isso é o que precisa nos mover e ser nossa governabilidade.

 

Luciane Reis é publicitária, Especialista em Gestão Pública e produção de conteúdo digital,  coordenou o Plano Juventude Viva na Gestão Dilma Rouseff e foi membro do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência enquanto assessora de Juventude no Governo Camilo Santana.

Artigos

Parentalidades negras: Dói Gerar? – Por Aline Lisbôa

Jamile Menezes

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Aline Lisbôa

Aos 20 anos, ganhei minha primeira filha. Lembro que o meu maior desespero, naquele momento, não foi a maternidade em si, mas o medo de me tornar mais uma “guerreira”. Essa palavra, tantas vezes usada como elogio, sempre me soou como uma armadilha. “Guerreira” era o nome dado às mulheres negras que eu via à minha volta — sempre fortes, resilientes, mas quase nunca acolhidas. Mulheres que aprendiam cedo a engolir o cansaço e a transformar dor em sobrevivência.

Gerar uma menina preta, portanto, foi uma experiência marcada por aflições e esperança. Eu já tinha letramento racial suficiente para compreender que amar, dentro de um contexto desigual, iria me doer. Não porque o amor fosse escasso, mas porque amar uma criança negra em um país racista é um ato político — e, como todo ato político, carrega resistência e feridas.

Chorei e senti medo por longos nove meses. Idealizei a infância da minha filha e, inevitavelmente, revisitei as dores da minha. Cada contração parecia carregar também o peso das minhas histórias e de todas as meninas pretas que tiveram sua doçura interrompida cedo demais.

Mas a maternidade também me devolveu à criança viva que ainda existia dentro de mim. Quando minha filha sofreu seu primeiro episódio de violência racial, senti algo que nunca havia sentido antes: uma força ancestral que me empurrava a reagir. Era como se, naquele instante, eu fizesse as pazes com o silêncio imposto à menina que eu fui. Pela primeira vez, não calei. Escrevi, falei, denunciei. A maternidade, para mim, tornou-se um espaço de elaboração e cura coletiva.

A partir daí, passei a acreditar mais profundamente na potência transformadora do letramento racial nas famílias negras. É por meio dele que compreendemos o funcionamento do racismo estrutural e as relações desiguais entre pessoas negras e brancas — um sistema que atravessa as infâncias, molda oportunidades e define afetos. Educar uma criança negra sem esse entendimento é deixá-la vulnerável a uma violência que, muitas vezes, começa na escola, nas telas, ou no olhar do outro.

O letramento racial, portanto, não é um luxo intelectual: é uma ferramenta de sobrevivência e dignidade. Ele nos ajuda a nomear as dores, a identificar o racismo, e a responder a ele com consciência e estratégia — não mais com silêncio e culpa.

Lembro-me da matriarca da minha família, minha bisavó Celina. Mulher preta, sem estudos formais, mas dona de uma sabedoria que hoje reconheço como ancestral. Ela entendia, à sua maneira, o funcionamento do mundo e sabia como proteger seus filhos, netos e bisnetos. Sua forma de amor era também resistência. Celina não falava de “letramento racial”, mas vivia a prática da reexistência todos os dias — ensinando-nos a caminhar com dignidade mesmo quando o caminho era de pedras.

Hoje, quando olho para minha filha, percebo que gerar uma criança preta foi, acima de tudo, um ato revolucionário. Porque gerar, nesse corpo e nesse tempo, é também desafiar o projeto histórico que tentou nos apagar. E ser mãe/pai negros, com consciência racial, é transformar o medo em força, o silêncio em palavra, e o amor em luta.

Aline Lisbôa é mulher, negra, nordestina, mãe, educadora antirracista, consultora de diversidade, equidade e inclusão, pedagoga, psicopedagoga e pesquisadora, além de articulista e escritora. Seu livro “Quantos sim cabem em um não” está disponível AQUI. 

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Opinião

Trançar é trabalho: o reconhecimento oficial é vitória, mas a luta continua

Iasmim Moreira

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Trançar

Em junho de 2025, o Brasil deu um passo histórico: a profissão de trancista foi oficialmente reconhecida na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), sob o código 5193-15. Isso significa que o Estado, através do Ministério do Trabalho e Emprego, reconhece, de forma tardia, que trançar cabelos é ofício, é arte, é cuidado, é economia viva. E mais do que tudo isso: é trabalho.

O reconhecimento representa uma conquista fundamental para milhares de mulheres, em sua maioria negras, que sustentam suas casas e comunidades com as mãos, os fios e os saberes ancestrais que atravessam gerações. Trata-se de uma reparação simbólica e política, que marca o início de uma nova etapa para essas profissionais: a da reivindicação por direitos reais.

Mas é preciso deixar claro: esse reconhecimento, apesar de histórico, não resolve os problemas estruturais enfrentados pelas trancistas no cotidiano. A informalidade ainda é massiva. A precariedade também.

Trançar é estar horas seguidas em pé, muitas vezes sem pausas, sem ergonomia adequada, sem alimentação garantida. É adoecer com dores musculares, tendinites, varizes e não ter acesso a atendimento médico regular ou benefícios trabalhistas. É trabalhar em casa, dividindo o espaço com filhos pequenos, improvisando berços ao lado da cadeira de trança. É ser artista, psicóloga, educadora — tudo isso num ambiente que raramente é chamado de “profissional”.

Além do desgaste físico e emocional, existe o estigma. Por muito tempo, a atividade foi vista como “bico”, “coisa de quem não tem estudo”, ou “trabalho informal de periferia”. Esse racismo estrutural que desvaloriza o fazer preto, que silencia os saberes afrocentrados, também se manifesta nas ausências do Estado: não há linhas de financiamento específicas para esses negócios, nem políticas de formação técnica acessíveis, nem políticas de saúde do trabalho voltadas à realidade dessas mulheres.

O reconhecimento na CBO precisa ser mais que um selo burocrático. Ele deve abrir caminhos para políticas públicas efetivas: acesso facilitado à formalização, capacitação profissional gratuita, inclusão previdenciária, incentivos para empreendedoras da beleza negra, cuidados com a saúde física e mental dessas profissionais. Precisa ser prioridade nos planos municipais e estaduais de economia criativa, de cultura e de geração de renda.

Também é hora de rever o que se entende por “profissão”. O saber que vem da oralidade, da prática cotidiana e da vivência comunitária precisa ser valorizado tanto quanto aquele que vem da academia. Os saberes se der trancista são ensinados de mãe pra filha, de amiga pra amiga, nas vielas, nos quintais e nos salões. E isso é educação também. Isso é conhecimento.

Reconhecer as trancistas é reconhecer o valor da cultura afro-brasileira, a potência das periferias e a força das mulheres negras que movem o país com suas mãos. É legitimar que fazer trança é mais que estética — é identidade, resistência e construção de futuro.

Hoje, o nome das trancistas está, enfim, no papel. Mas a dignidade do trabalho vai além da formalidade. Exige investimento, cuidado e respeito. Porque trançar é trabalho. E como todo trabalho, merece ser protegido, valorizado e vivido com dignidade.

 

Por Iasmim Moreira

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Opinião

CONAPIR 2025: É hora de romper a narrativa que autoriza a morte de pessoas negras – Por Luciane Reis

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CONAPIR

A Conferência Nacional de Igualdade Racial precisa confrontar o discurso oficial de segurança pública que desumaniza e extermina corpos negros no Brasil.

Enquanto o Brasil se prepara para a Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR) de 2025, um tema precisa ocupar o centro do debate: como a narrativa oficial sobre segurança pública tem sustentado o genocídio da população negra, especialmente nas periferias urbanas.

Na Bahia, estado com a maior população negra do país, há mais de 30 anos se reforça um discurso de combate ao crime centrado em repressão e militarização. O resultado é conhecido: altíssimos índices de letalidade policial, sobretudo contra jovens negros. Mas o mais alarmante é que essa política vem acompanhada de uma comunicação que normaliza a violência estatal.

A linguagem da “guerra às drogas”, do “confronto” e do “bandido abatido” desumaniza as vítimas e esvazia o debate público. A sociedade é anestesiada por uma narrativa que transforma assassinatos em estatísticas e legitima a violência como forma de controle social.

O silêncio coletivo diante dessas mortes não é natural — ele é construído. É produto de uma comunicação estratégica que define quem deve ser temido, controlado ou eliminado. E os meios de comunicação, ao reproduzirem as versões oficiais sem questionamento, reforçam essa lógica.

A CONAPIR 2025 não pode ignorar esse pacto de silenciamento. Se pretende ser um marco real na promoção da igualdade racial, precisa enfrentar esse modelo de segurança e a forma como ele é comunicado. Isso significa:

  • Exigir uma comunicação pública antirracista, que enfrente os estigmas históricos contra a população negra;
  • Estabelecer protocolos responsáveis para a cobertura midiática de violência, que respeitem os direitos humanos;
  • Apoiar a mídia negra e periférica, que já produz contra-narrativas fundamentais;
  • Revisar as políticas de segurança com foco em cuidado, prevenção e reparação racial, e não em extermínio.

Segurança pública não é sinônimo de controle e morte. É direito à vida com dignidade, especialmente para aqueles que historicamente foram alvos do Estado.

Sem romper com essa narrativa que mata e silencia, não haverá igualdade possível.

A CONAPIR tem a chance de começar esse novo capítulo. Que não seja mais uma conferência de promessas — mas o início de uma reescrita coletiva da história, onde a vida negra não seja exceção, mas regra.

 

Luciane Reis é Comunicóloga, graduada em Publicidade e Propaganda pela UCSAL, especialista em Produção de Conteúdo para Educação e mestra em Desenvolvimento e Gestão pela UFBA e CEO Mercafro

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