Opinião
CULTURA NEGRA – VOCÊ TEM MEDO DE QUÊ?

IFÁ Afrobeat – Foto Heder Novaes
Desde que me entendo por gente que ouço falar sobre a riqueza da cultura negra na Bahia. Do mesmo modo, sempre que as mídias desejam caracterizar ou exemplificar esta mesma cultura, lá se vem com as mesmíssimas manifestações tradicionais, como se a nossa cultura tivesse sido congelada pelo tempo – preferencialmente no século XV. Período do início do projeto escravista colonial no continente africano.
Pior, na maioria das vezes, essa representação se dá com estereótipos monotemáticos de pureza, ingenuidade e primitivismo, que nada tem a ver com a dinâmica cultural intrínseca a qualquer civilização. Esta armadilha, que às vezes encanta os mais desavisados e agrada aos preconceituosos de plantão, está sendo rompida e com vigor, mais uma vez, no cenário cultural baiano.

Banco de Imagens
Após o boom das bandas percussivas baianas, em particular as oriundas dos blocos afros, como o Ilê Aiyê, Araketu, Olodum – que impactaram o mundo musical brasileiro a partir da cena carnavalesca -, aliando o vigor das batidas sonoras à luta de combate ao racismo -, tivemos uma espécie de esgotamento deste modelo organizacional/musical. Este que fez com que houvesse um empobrecimento neste campo, quando não, uma repetição caricatural daquilo que havia dado certo.
Se ampliarmos a angular e focarmos na Dança, teremos o mesmo cenário, a partir do “Frutos Tropicais” – grupo que liderou uma virada histórica no dançar negro da Bahia e deixou legado importantíssimo para tudo e todos. Neste mesmo olhar, podemos registrar a explosão do teatro baiano, tendo como referência a cultura negra com a leitura crítica dos “Los Catedrásticos”, seguida do indefectível Bando de Teatro Olodum, que revelou e disponibilizou para o Brasil o que tinha de melhor da dramaturgia negra baiana.

Foto: Wendell Wagner
Mas, não adianta ficarmos apenas registrando o passado e nos comprazendo com o que deu certo. Estes cumpriram com seus objetivos e deixaram seus legados, o que por si só já é suficiente. Portanto, está na hora de levantar acampamento e dar o passo adiante. A cena está mais do que propícia, tem muita coisa inovadora surgindo, mas que ainda encontram certa trava de conservadorismo e imobilismo, marcadamente nas lideranças culturais negras, que tem minimizado a difusão destas novas manifestações.
Refiro-me aos novos grupos, artistas e movimentos que tem surgido no cenário cultural da Bahia. No campo musical, é visível a empatia, ousadia e criatividade com que se apresentam, por exemplo, o Baiana System, o Ifá Afro Beat e a explosiva Larissa Luz. Esta última, que mais me chama atenção, com seu instigante espetáculo “Território Conquistado”. Um primor de qualidade e provocação, tanto crítica quanto estética. Uma verdadeira pancada nas cabeças e mentes conservadoras do nosso metiê artístico/cultural baiano.

Banco de Imagens – Larissa Luz
No campo dos blocos afros, o Cortejo Afro – um outro exemplo – vem trilhando caminhos nunca dantes navegados pelo movimento negro. É assumidamente pop, transgressor e aberto ao diálogo com o desconhecido, sem se importar com o lugar comum do discurso pseudo/centrado de certa negritude baiana.
Na mesma toada, temos o brilhantíssimo Lázaro Ramos, que além de herdeiro do Bando de Teatro Olodum, segue trilhas também nunca dantes navegadas, a exemplo do belíssimo espetáculo “No Topo da Montanha” e da sua inovadora série “Mister Brau”. Em ambos, vem aliando qualidade interpretativa, visão crítica, rigor estético e direção precisa – tudo a serviço do não menos importante combate ao racismo.

Banco de imagens Mister Brau
Neste território, ainda temos o mais que promissor, diria mesmo o melhor roteirista/diretor/dramaturgo, e o que mais quiser ser, deste cenário artístico – Elísio Lopes, que esbanja qualidade, criatividade e ousadia em tudo que faz, seja no show de Ivete, na Noite da Beleza Negra ou até mesmo no caricatural “Esquenta” de Regina Casé.
Na literatura, que merece um olhar especial, por ser território quase sempre inóspito para a presença negra, não só está sendo ocupado com o que há de melhor na literatura baiana, mas também pela inusitada presença feminina.

Lívia Natália – Foto Andreia Magnoni
Exemplos disso são os trabalhos de Lívia Natália (escritora e Doutora em Literatura), Rita Santana (escritora e Professora), Anderson Shon (Poeta e Professor), Saulo Dourado (Escritor e Professor), por exemplo. Chama a atenção ainda, o fato de todos eles/as, serem professores/as.
Enfim, há luz no fim do túnel, basta que estejamos dispostos a enxergar. Portanto, “..nada a temer, senão o correr da luta..”. Axé! E Toca a zabumba, que a terra é nossa!
Zulu Araújo é natural de Salvador, militante do movimento negro do Brasil, possui trajetória marcada por trabalhos de promoção, pesquisa e divulgação da Cultura Negra, experiência adquirida na gestão de diversos eventos culturais no país e no exterior. Foi presidente da Fundação Cultural Palmares (2007-2010) e, em 2015, assumiu a Fundação Pedro Calmon, vinculada à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.
Artigos
Parentalidades negras: Dói Gerar? – Por Aline Lisbôa
Aos 20 anos, ganhei minha primeira filha. Lembro que o meu maior desespero, naquele momento, não foi a maternidade em si, mas o medo de me tornar mais uma “guerreira”. Essa palavra, tantas vezes usada como elogio, sempre me soou como uma armadilha. “Guerreira” era o nome dado às mulheres negras que eu via à minha volta — sempre fortes, resilientes, mas quase nunca acolhidas. Mulheres que aprendiam cedo a engolir o cansaço e a transformar dor em sobrevivência.
Gerar uma menina preta, portanto, foi uma experiência marcada por aflições e esperança. Eu já tinha letramento racial suficiente para compreender que amar, dentro de um contexto desigual, iria me doer. Não porque o amor fosse escasso, mas porque amar uma criança negra em um país racista é um ato político — e, como todo ato político, carrega resistência e feridas.
Chorei e senti medo por longos nove meses. Idealizei a infância da minha filha e, inevitavelmente, revisitei as dores da minha. Cada contração parecia carregar também o peso das minhas histórias e de todas as meninas pretas que tiveram sua doçura interrompida cedo demais.
Mas a maternidade também me devolveu à criança viva que ainda existia dentro de mim. Quando minha filha sofreu seu primeiro episódio de violência racial, senti algo que nunca havia sentido antes: uma força ancestral que me empurrava a reagir. Era como se, naquele instante, eu fizesse as pazes com o silêncio imposto à menina que eu fui. Pela primeira vez, não calei. Escrevi, falei, denunciei. A maternidade, para mim, tornou-se um espaço de elaboração e cura coletiva.
A partir daí, passei a acreditar mais profundamente na potência transformadora do letramento racial nas famílias negras. É por meio dele que compreendemos o funcionamento do racismo estrutural e as relações desiguais entre pessoas negras e brancas — um sistema que atravessa as infâncias, molda oportunidades e define afetos. Educar uma criança negra sem esse entendimento é deixá-la vulnerável a uma violência que, muitas vezes, começa na escola, nas telas, ou no olhar do outro.
O letramento racial, portanto, não é um luxo intelectual: é uma ferramenta de sobrevivência e dignidade. Ele nos ajuda a nomear as dores, a identificar o racismo, e a responder a ele com consciência e estratégia — não mais com silêncio e culpa.
Lembro-me da matriarca da minha família, minha bisavó Celina. Mulher preta, sem estudos formais, mas dona de uma sabedoria que hoje reconheço como ancestral. Ela entendia, à sua maneira, o funcionamento do mundo e sabia como proteger seus filhos, netos e bisnetos. Sua forma de amor era também resistência. Celina não falava de “letramento racial”, mas vivia a prática da reexistência todos os dias — ensinando-nos a caminhar com dignidade mesmo quando o caminho era de pedras.
Hoje, quando olho para minha filha, percebo que gerar uma criança preta foi, acima de tudo, um ato revolucionário. Porque gerar, nesse corpo e nesse tempo, é também desafiar o projeto histórico que tentou nos apagar. E ser mãe/pai negros, com consciência racial, é transformar o medo em força, o silêncio em palavra, e o amor em luta.
Aline Lisbôa é mulher, negra, nordestina, mãe, educadora antirracista, consultora de diversidade, equidade e inclusão, pedagoga, psicopedagoga e pesquisadora, além de articulista e escritora. Seu livro “Quantos sim cabem em um não” está disponível AQUI.
Opinião
Trançar é trabalho: o reconhecimento oficial é vitória, mas a luta continua
Em junho de 2025, o Brasil deu um passo histórico: a profissão de trancista foi oficialmente reconhecida na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), sob o código 5193-15. Isso significa que o Estado, através do Ministério do Trabalho e Emprego, reconhece, de forma tardia, que trançar cabelos é ofício, é arte, é cuidado, é economia viva. E mais do que tudo isso: é trabalho.
O reconhecimento representa uma conquista fundamental para milhares de mulheres, em sua maioria negras, que sustentam suas casas e comunidades com as mãos, os fios e os saberes ancestrais que atravessam gerações. Trata-se de uma reparação simbólica e política, que marca o início de uma nova etapa para essas profissionais: a da reivindicação por direitos reais.
Mas é preciso deixar claro: esse reconhecimento, apesar de histórico, não resolve os problemas estruturais enfrentados pelas trancistas no cotidiano. A informalidade ainda é massiva. A precariedade também.
Trançar é estar horas seguidas em pé, muitas vezes sem pausas, sem ergonomia adequada, sem alimentação garantida. É adoecer com dores musculares, tendinites, varizes e não ter acesso a atendimento médico regular ou benefícios trabalhistas. É trabalhar em casa, dividindo o espaço com filhos pequenos, improvisando berços ao lado da cadeira de trança. É ser artista, psicóloga, educadora — tudo isso num ambiente que raramente é chamado de “profissional”.
Além do desgaste físico e emocional, existe o estigma. Por muito tempo, a atividade foi vista como “bico”, “coisa de quem não tem estudo”, ou “trabalho informal de periferia”. Esse racismo estrutural que desvaloriza o fazer preto, que silencia os saberes afrocentrados, também se manifesta nas ausências do Estado: não há linhas de financiamento específicas para esses negócios, nem políticas de formação técnica acessíveis, nem políticas de saúde do trabalho voltadas à realidade dessas mulheres.
O reconhecimento na CBO precisa ser mais que um selo burocrático. Ele deve abrir caminhos para políticas públicas efetivas: acesso facilitado à formalização, capacitação profissional gratuita, inclusão previdenciária, incentivos para empreendedoras da beleza negra, cuidados com a saúde física e mental dessas profissionais. Precisa ser prioridade nos planos municipais e estaduais de economia criativa, de cultura e de geração de renda.
Também é hora de rever o que se entende por “profissão”. O saber que vem da oralidade, da prática cotidiana e da vivência comunitária precisa ser valorizado tanto quanto aquele que vem da academia. Os saberes se der trancista são ensinados de mãe pra filha, de amiga pra amiga, nas vielas, nos quintais e nos salões. E isso é educação também. Isso é conhecimento.
Reconhecer as trancistas é reconhecer o valor da cultura afro-brasileira, a potência das periferias e a força das mulheres negras que movem o país com suas mãos. É legitimar que fazer trança é mais que estética — é identidade, resistência e construção de futuro.
Hoje, o nome das trancistas está, enfim, no papel. Mas a dignidade do trabalho vai além da formalidade. Exige investimento, cuidado e respeito. Porque trançar é trabalho. E como todo trabalho, merece ser protegido, valorizado e vivido com dignidade.
Por Iasmim Moreira
Opinião
CONAPIR 2025: É hora de romper a narrativa que autoriza a morte de pessoas negras – Por Luciane Reis
A Conferência Nacional de Igualdade Racial precisa confrontar o discurso oficial de segurança pública que desumaniza e extermina corpos negros no Brasil.
Enquanto o Brasil se prepara para a Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR) de 2025, um tema precisa ocupar o centro do debate: como a narrativa oficial sobre segurança pública tem sustentado o genocídio da população negra, especialmente nas periferias urbanas.
Na Bahia, estado com a maior população negra do país, há mais de 30 anos se reforça um discurso de combate ao crime centrado em repressão e militarização. O resultado é conhecido: altíssimos índices de letalidade policial, sobretudo contra jovens negros. Mas o mais alarmante é que essa política vem acompanhada de uma comunicação que normaliza a violência estatal.
A linguagem da “guerra às drogas”, do “confronto” e do “bandido abatido” desumaniza as vítimas e esvazia o debate público. A sociedade é anestesiada por uma narrativa que transforma assassinatos em estatísticas e legitima a violência como forma de controle social.
O silêncio coletivo diante dessas mortes não é natural — ele é construído. É produto de uma comunicação estratégica que define quem deve ser temido, controlado ou eliminado. E os meios de comunicação, ao reproduzirem as versões oficiais sem questionamento, reforçam essa lógica.
A CONAPIR 2025 não pode ignorar esse pacto de silenciamento. Se pretende ser um marco real na promoção da igualdade racial, precisa enfrentar esse modelo de segurança e a forma como ele é comunicado. Isso significa:
- Exigir uma comunicação pública antirracista, que enfrente os estigmas históricos contra a população negra;
- Estabelecer protocolos responsáveis para a cobertura midiática de violência, que respeitem os direitos humanos;
- Apoiar a mídia negra e periférica, que já produz contra-narrativas fundamentais;
- Revisar as políticas de segurança com foco em cuidado, prevenção e reparação racial, e não em extermínio.
Segurança pública não é sinônimo de controle e morte. É direito à vida com dignidade, especialmente para aqueles que historicamente foram alvos do Estado.
Sem romper com essa narrativa que mata e silencia, não haverá igualdade possível.
A CONAPIR tem a chance de começar esse novo capítulo. Que não seja mais uma conferência de promessas — mas o início de uma reescrita coletiva da história, onde a vida negra não seja exceção, mas regra.
Luciane Reis é Comunicóloga, graduada em Publicidade e Propaganda pela UCSAL, especialista em Produção de Conteúdo para Educação e mestra em Desenvolvimento e Gestão pela UFBA e CEO Mercafro
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