Opinião
#Opinião – Por que ler autoras negras? Por Taciana Gacelin
O real em si não existe e não se tem acesso a esse de forma substancialmente concreta e palpável, já que toda realidade é perpassada pela linguagem. Em se tratando de linguagem, essa construção simbólica, o que se está designando é a noção de poder narrar o mundo, representá-lo. Sendo assim, o real é baseado em construtos calcados em verossimilhanças, ou seja, aquilo que é passível de ser verdadeiro, podendo até, não raras vezes, ser ilógico, mas que está ancorado no poder de quem diz e que pode dizer.
Durante muitos anos, as vozes negras foram silenciadas. O não-ouvir não necessariamente implica em afirmar que não havia alguém manifestando ideias e tensionando as noções de verdades consolidadas em determinado período. O silenciamento e o não-ouvir ganham corpo à medida em que a palavra é minimizada e essa não encontra teias de ligações para que possa sair de uma ideia individual, esfacelada, desarticulada e adentrar à coletividade, construindo e reforçando uma memória coletiva para além dos guetos e espaços ainda não vistos como oficialmente de poder. Desse modo, com efeito somente da palavra, não há, em grande medida, a autoafirmação. A palavra só faz sentido dentro do discurso, das condições de produção e da formação discursiva. O discurso constrói a realidade, forjando-se de verdade possível.
A leitura de mulheres negras implica em reforçar e (re)construir uma cena histórica que foi desconstruída, ao se esconder o que precisava ser interpretado, lido através de lentes que observem as sequências discursivas como produtoras de sentido. Nesse caso, o ato de ler não implica obrigatoriamente em ter acesso a um livro de autora negra, até porque a esse tipo de conteúdo (escritos formais, jornais, revistas, livros) a pele negra teve o acesso negado, o que reverbera em outras consequências para o grupo.
Desse modo, o conceito de leitura deve ser ampliado para a possibilidade de compreender os sentidos associados ao cabelo, à raça, aos relacionamentos amorosos, aos empregos e desempregos, às condições da moradia e aos acessos em sentido amplo. Somente lendo mulheres negras é que uma negra entende o porquê da sua existência ser marcada de um modo e não de outro. Não são meras coincidências, mas as mulheres negras possuem (des)caminhos que evidenciam o real que outros tentam destruir, desfocar, tirar de cena.
Somente lendo mulheres negras pode-se entender o posicionamento discursivo do Outro e do Nós. Não cabe ao Outro dizer pelo grupo ao qual ele não pertence. É necessário construir um Nós por Nós. Sim, a relativização de que nem todas as mulheres negras são iguais deve ser feita, pois há individualidades, histórias de vidas diferenciadas, contextos políticos diversos, temporalidades. Entretanto, há sempre algo que une as mulheres negras, independentemente, do estado, país, cidade. As exclusões de espaços sempre foram submetidas às mulheres negras.
Nesse ponto, é necessário evidenciar que mulheres, independentemente da raça, são excluídas de muitos lugares, mas não o são por serem brancas. Não há, discursivamente, o não acesso de uma mulher por ela ser branca, mas há a exclusão da mulher negra por ela ser negra.
Desse modo, sendo uma mulher negra, vivenciar experiências com outras mulheres negras é, não raras vezes, colocar um espelho diante de si e entender sobre ditos, linguagem, discurso. O impacto do autorreconhecimento, muitas vezes, é doloroso, mas necessário para se entender o emaranhado de sentidos que são produzidos sobre o que é ser uma mulher negra. Não há outro modo para a desconstrução e (re)posicionamento do olhar sobre si, pois as palavras nomeiam, mas, somente, o discurso pode conferir legitimidade à luta, já que esse demarca o poder da própria narrativa, desmistificando o que o Outro diz sobre si e sobre o Nós. A palavra sempre esteve colocada, mas o discurso assusta, porque é representação, desconstrução, desordem, linguagem, posicionamento.
Uma mulher negra, para desvencilhar-se da mordaça imposta por uma sociedade que tenta negar uma parte da história, que apaga a memória de um grupo, necessariamente deve conhecer o que as mulheres negras dizem sobre as mulheres negras. É desse modo que haverá uma (re)construção, (re)desconstrução da própria imagem e um reforço para outra construção discursiva do que é ser negra e de como as diversas situações obrigam o entendimento sobre si mesma. Na tensão de lutas simbólicas, já não se admite que o Outro crie uma mitologia sobre os corpos e vidas das mulheres negras.
Entretanto, para o embate, a palavra sozinha perde poder, sentido, pois é somente no discurso que essa pode tecer algo sustentável, capaz de enfraquecer, desestabilizar a narrativa de quem diz que detém o condão para dizer o que é ser negra. Utilizar a palavra racismo, infelizmente, é pouco para desconstruir o sólido. É preciso juntar as marcas da história e produzir um discurso, o qual está interligado à noção de efeitos de sentido. Essa possibilidade advém do conhecimento do próprio eu coletivo, vozes de mulheres negras, pois as marcas, quando unidas, evidenciam o nó capaz de ligar cada mulher negra a alguma igualdade, a qual não deve ser vista como um evento isolado, mas como uma construção simbólica que origina o lugar no qual mulheres negras são inseridas.
Taciana Gacelin – Doutoranda em Linguística (Ufal), Mestra em Estudo de Linguagens (Uneb), Comunicóloga – jornalista (Ufba)
Artigos
Parentalidades negras: Dói Gerar? – Por Aline Lisbôa
Aos 20 anos, ganhei minha primeira filha. Lembro que o meu maior desespero, naquele momento, não foi a maternidade em si, mas o medo de me tornar mais uma “guerreira”. Essa palavra, tantas vezes usada como elogio, sempre me soou como uma armadilha. “Guerreira” era o nome dado às mulheres negras que eu via à minha volta — sempre fortes, resilientes, mas quase nunca acolhidas. Mulheres que aprendiam cedo a engolir o cansaço e a transformar dor em sobrevivência.
Gerar uma menina preta, portanto, foi uma experiência marcada por aflições e esperança. Eu já tinha letramento racial suficiente para compreender que amar, dentro de um contexto desigual, iria me doer. Não porque o amor fosse escasso, mas porque amar uma criança negra em um país racista é um ato político — e, como todo ato político, carrega resistência e feridas.
Chorei e senti medo por longos nove meses. Idealizei a infância da minha filha e, inevitavelmente, revisitei as dores da minha. Cada contração parecia carregar também o peso das minhas histórias e de todas as meninas pretas que tiveram sua doçura interrompida cedo demais.
Mas a maternidade também me devolveu à criança viva que ainda existia dentro de mim. Quando minha filha sofreu seu primeiro episódio de violência racial, senti algo que nunca havia sentido antes: uma força ancestral que me empurrava a reagir. Era como se, naquele instante, eu fizesse as pazes com o silêncio imposto à menina que eu fui. Pela primeira vez, não calei. Escrevi, falei, denunciei. A maternidade, para mim, tornou-se um espaço de elaboração e cura coletiva.
A partir daí, passei a acreditar mais profundamente na potência transformadora do letramento racial nas famílias negras. É por meio dele que compreendemos o funcionamento do racismo estrutural e as relações desiguais entre pessoas negras e brancas — um sistema que atravessa as infâncias, molda oportunidades e define afetos. Educar uma criança negra sem esse entendimento é deixá-la vulnerável a uma violência que, muitas vezes, começa na escola, nas telas, ou no olhar do outro.
O letramento racial, portanto, não é um luxo intelectual: é uma ferramenta de sobrevivência e dignidade. Ele nos ajuda a nomear as dores, a identificar o racismo, e a responder a ele com consciência e estratégia — não mais com silêncio e culpa.
Lembro-me da matriarca da minha família, minha bisavó Celina. Mulher preta, sem estudos formais, mas dona de uma sabedoria que hoje reconheço como ancestral. Ela entendia, à sua maneira, o funcionamento do mundo e sabia como proteger seus filhos, netos e bisnetos. Sua forma de amor era também resistência. Celina não falava de “letramento racial”, mas vivia a prática da reexistência todos os dias — ensinando-nos a caminhar com dignidade mesmo quando o caminho era de pedras.
Hoje, quando olho para minha filha, percebo que gerar uma criança preta foi, acima de tudo, um ato revolucionário. Porque gerar, nesse corpo e nesse tempo, é também desafiar o projeto histórico que tentou nos apagar. E ser mãe/pai negros, com consciência racial, é transformar o medo em força, o silêncio em palavra, e o amor em luta.
Aline Lisbôa é mulher, negra, nordestina, mãe, educadora antirracista, consultora de diversidade, equidade e inclusão, pedagoga, psicopedagoga e pesquisadora, além de articulista e escritora. Seu livro “Quantos sim cabem em um não” está disponível AQUI.
Opinião
Trançar é trabalho: o reconhecimento oficial é vitória, mas a luta continua
Em junho de 2025, o Brasil deu um passo histórico: a profissão de trancista foi oficialmente reconhecida na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), sob o código 5193-15. Isso significa que o Estado, através do Ministério do Trabalho e Emprego, reconhece, de forma tardia, que trançar cabelos é ofício, é arte, é cuidado, é economia viva. E mais do que tudo isso: é trabalho.
O reconhecimento representa uma conquista fundamental para milhares de mulheres, em sua maioria negras, que sustentam suas casas e comunidades com as mãos, os fios e os saberes ancestrais que atravessam gerações. Trata-se de uma reparação simbólica e política, que marca o início de uma nova etapa para essas profissionais: a da reivindicação por direitos reais.
Mas é preciso deixar claro: esse reconhecimento, apesar de histórico, não resolve os problemas estruturais enfrentados pelas trancistas no cotidiano. A informalidade ainda é massiva. A precariedade também.
Trançar é estar horas seguidas em pé, muitas vezes sem pausas, sem ergonomia adequada, sem alimentação garantida. É adoecer com dores musculares, tendinites, varizes e não ter acesso a atendimento médico regular ou benefícios trabalhistas. É trabalhar em casa, dividindo o espaço com filhos pequenos, improvisando berços ao lado da cadeira de trança. É ser artista, psicóloga, educadora — tudo isso num ambiente que raramente é chamado de “profissional”.
Além do desgaste físico e emocional, existe o estigma. Por muito tempo, a atividade foi vista como “bico”, “coisa de quem não tem estudo”, ou “trabalho informal de periferia”. Esse racismo estrutural que desvaloriza o fazer preto, que silencia os saberes afrocentrados, também se manifesta nas ausências do Estado: não há linhas de financiamento específicas para esses negócios, nem políticas de formação técnica acessíveis, nem políticas de saúde do trabalho voltadas à realidade dessas mulheres.
O reconhecimento na CBO precisa ser mais que um selo burocrático. Ele deve abrir caminhos para políticas públicas efetivas: acesso facilitado à formalização, capacitação profissional gratuita, inclusão previdenciária, incentivos para empreendedoras da beleza negra, cuidados com a saúde física e mental dessas profissionais. Precisa ser prioridade nos planos municipais e estaduais de economia criativa, de cultura e de geração de renda.
Também é hora de rever o que se entende por “profissão”. O saber que vem da oralidade, da prática cotidiana e da vivência comunitária precisa ser valorizado tanto quanto aquele que vem da academia. Os saberes se der trancista são ensinados de mãe pra filha, de amiga pra amiga, nas vielas, nos quintais e nos salões. E isso é educação também. Isso é conhecimento.
Reconhecer as trancistas é reconhecer o valor da cultura afro-brasileira, a potência das periferias e a força das mulheres negras que movem o país com suas mãos. É legitimar que fazer trança é mais que estética — é identidade, resistência e construção de futuro.
Hoje, o nome das trancistas está, enfim, no papel. Mas a dignidade do trabalho vai além da formalidade. Exige investimento, cuidado e respeito. Porque trançar é trabalho. E como todo trabalho, merece ser protegido, valorizado e vivido com dignidade.
Por Iasmim Moreira
Opinião
CONAPIR 2025: É hora de romper a narrativa que autoriza a morte de pessoas negras – Por Luciane Reis
A Conferência Nacional de Igualdade Racial precisa confrontar o discurso oficial de segurança pública que desumaniza e extermina corpos negros no Brasil.
Enquanto o Brasil se prepara para a Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR) de 2025, um tema precisa ocupar o centro do debate: como a narrativa oficial sobre segurança pública tem sustentado o genocídio da população negra, especialmente nas periferias urbanas.
Na Bahia, estado com a maior população negra do país, há mais de 30 anos se reforça um discurso de combate ao crime centrado em repressão e militarização. O resultado é conhecido: altíssimos índices de letalidade policial, sobretudo contra jovens negros. Mas o mais alarmante é que essa política vem acompanhada de uma comunicação que normaliza a violência estatal.
A linguagem da “guerra às drogas”, do “confronto” e do “bandido abatido” desumaniza as vítimas e esvazia o debate público. A sociedade é anestesiada por uma narrativa que transforma assassinatos em estatísticas e legitima a violência como forma de controle social.
O silêncio coletivo diante dessas mortes não é natural — ele é construído. É produto de uma comunicação estratégica que define quem deve ser temido, controlado ou eliminado. E os meios de comunicação, ao reproduzirem as versões oficiais sem questionamento, reforçam essa lógica.
A CONAPIR 2025 não pode ignorar esse pacto de silenciamento. Se pretende ser um marco real na promoção da igualdade racial, precisa enfrentar esse modelo de segurança e a forma como ele é comunicado. Isso significa:
- Exigir uma comunicação pública antirracista, que enfrente os estigmas históricos contra a população negra;
- Estabelecer protocolos responsáveis para a cobertura midiática de violência, que respeitem os direitos humanos;
- Apoiar a mídia negra e periférica, que já produz contra-narrativas fundamentais;
- Revisar as políticas de segurança com foco em cuidado, prevenção e reparação racial, e não em extermínio.
Segurança pública não é sinônimo de controle e morte. É direito à vida com dignidade, especialmente para aqueles que historicamente foram alvos do Estado.
Sem romper com essa narrativa que mata e silencia, não haverá igualdade possível.
A CONAPIR tem a chance de começar esse novo capítulo. Que não seja mais uma conferência de promessas — mas o início de uma reescrita coletiva da história, onde a vida negra não seja exceção, mas regra.
Luciane Reis é Comunicóloga, graduada em Publicidade e Propaganda pela UCSAL, especialista em Produção de Conteúdo para Educação e mestra em Desenvolvimento e Gestão pela UFBA e CEO Mercafro
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